"E impelido pela minha ávida vontade, imaginando poder contemplar a grande abundância de formas várias e estranhas criadas pela artificiosa natureza, enredado pelos sombrios rochedos cheguei à entrada de uma grande caverna, diante da qual permaneci tão estupefato quanto ignorante dessas coisas. Com as costas curvadas em arco, a mão cansada e firme sobre o joelho, procurei, com a mão direita, fazer sombra aos olhos comprimidos, curvando-me cá e lá, para ver se conseguia discernir alguma coisa lá dentro, o que me era impedido pela grande escuridão ali reinante. Assim permanecendo, subitamente brotaram em mim duas coisas: medo e desejo; medo da ameaçadora e escura caverna, desejo de poder contemplar lá dentro algo que me fosse miraculoso"

Leonardo Da Vinci

quinta-feira, 29 de maio de 2014

grutas e cavernas - canal off

Recentemente o programa “grutas e cavernas” exibido no Canal off da TV à cabo causou uma perturbação no lado negro da força. Produzido pela carioca Manjubinha Filmes para o canal aventuresco da Globo, ele mostra dois mergulhadores em busca da foto perfeita. “Uma câmera que vai onde nenhuma outra câmera foi”.




O entusiasmo entre trogófilos e trogloxenos antes da estréia logo se transformou em decepção. 



Como se fosse possível esperar mais de um típico programa de turismo para quem curte aventuras no conforto do sofá de casa. Com belas imagens, músicas descoladas e sem riscos. Enfim, um programa pop.


Mas então eles resolveram dizer que são espeleólogos e feriram nosso orgulho cavernoso. Afinal não basta botar um capacete e sair por ai dizendo que é espeleólogo, certo? E o ritual de iniciação? E das profundezas escuras dos confins do agreste surgiram seres com macacões coloridos e luzes na cabeça dizendo que tá tudo errado

e os defensores do programa não tardaram a aparecer

Mas o programa é ruim? Não exatamente, depende. Ele apela para o falso ineditismo e para o exagero, omite informações, que provavelmente nem conhecem. Pessoalmente não gosto, acho pretensioso e lento. Mas deve agradar ao público alvo. O slogan no site da produtora dá uma dica do objetivo “Num filme o que importa não é a realidade, mas o que dela possa extrair a imaginação. http://www.manjubinhafilmes.com.br/


Filmes de ação


Os filmes são muito importantes para a divulgação de diversas atividades. Especialmente as de ação e que são praticadas em lugares em que não é qualquer um que chega ou qualquer um que pratica. Skate, surf, snowboard, escalada, mountain bike, vôo livre etc se valem dos vídeos para conseguir espaço e apoio. 



Em todas estas atividades há vários programas ruins, se aproveitando da fama ou pegando carona no estilo dos praticantes, mas geralmente sabe-se distinguir um praticante legítimo de um impostor. Em atividades de ação é mais fácil separar um do outro, já que se você não sabe o que está fazendo provavelmente vai se dar mal na brincadeira. Por isto todo mundo sabe que o Bob Burnquist é skatista e o Serra não.





Ser ou não ser

Embora tenhamos bastante gente identificada com o Serra, falta habilidade e sobra política, na espeleologia é mais complicado distinguir quem é quem. Parece mais fácil apontar um do que descrever o que ele seja.

Tirando as cavernas mais técnicas com abismos e sifões e atividades prolongadas com grande esforço físico, frio, dificuldade de acesso etc no geral a espeleologia pode não ser uma atividade que exija muito do praticante e, ao contrário do vôo livre por exemplo, tem-se tempo de pensar antes de tomar alguma decisão, podendo parar e/ou recuar.

Além disto são poucos praticantes que de fato se dedicam à explorar, registrar e estudar as cavernas, a maioria só visita as cavernas. Comparativamente, e com os devidos descontos, é como dizer que o cara que pedala no parque no domingo é tão ciclista quanto o campeão da Volta da França. Talvez por isto ainda se discuta se são caverneiros, cavernistas, espeleístas ou espeleólogos. E sabemos que há cavernas e cavernas e praticantes e praticantes. Facilmente confundidos uns com os outros.



exploração


mapeamento

Esta imprecisão entre nós, somada ao quase total desconhecimento do que fazemos e à curiosidade que as cavernas despertam são os ingredientes perfeitos para programas desinformativos como este Grutas e cavernas. Começando pelo nome. Quando aparecem estes caras despreparados, desinformados e querendo tirar uma onda de fodões, ficamos duplamente chateados. Pelas besteiras que falam e pela oportunidade perdida. E se num futuro houver outra chance, será necessário desconstruir a anterior para então contar uma nova história.

Falha nossa


E temos de apontar as falhas do lado de cá também. Há alguns anos alguns espeleólogos resolveram medir a altura da Gruta do Janelão com um balão de gás para aparecer no Globo Reporter. A ideia do balão com esta finalidade já seria questionável num mundo com telêmetros, trenas etc e numa gruta fácil como aquela. E para piorar o plano foi montado um teatro com uma reação química para gerar o gás que encheria o balão. Lógico que não funcionou.

Outra encenação, também durante o Globo Repórter, quando o repórter foi fazer um rapel desnecessário em um paredão no Piauí, naquelas cenas em que o cinegrafista filma debaixo, e, com todo o peso do seu equipamento é óbvio que ele não foi pelo mesmo caminho. Depois de bater a cabeça na rocha e ficar enrolado na corda, o repórter se borra quando o camarada que vinha dando segurança de cima decide cortar a corda para livrá-lo do enrosco.

Bons exemplos


Contando uma história interessante e bem produzida, como Jacques Cousteau fez brilhantemente e a BBC hoje esbanja - fazendo você ficar parado uma hora na frente da TV vendo formigas e depois sair falando como é legal ser formiga - quem sabe não despertaríamos o interesse pelas cavernas, a preocupação com a sua preservação e de quebra mostraríamos o que são e o que fazem os espeleólogos. 

O filme Caverna dos Sonhos Esquecidos de Werner Herzog é outro ótimo exemplo de entretenimento com informação sobre uma atividade que não é de ação. Há outros, alguns programas com o pessoal do Grupo Bambui são muito sérios.


O filme produzido na década de 1990 sobre a Lechuguilla é interessante e corretíssimo. Links abaixo.


E para fechar os filmes O mundo das cavernas da série Pré-história de Minas Gerais






Em tempos de privatização das unidades de conservação, destruição de cavernas e falta de praticantes não seria nada mal mostrar um pouco do nosso Brasil subterrâneo pelos olhos de quem o conhece. E então não se preocupar com programas do “tipo” aventura.

* os comentários sobre o programa são públicos e estão disponíveis no site do canal off